quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Crônica - Sentidos

O Gelson explicou que tinha sido inundado pelos sentidos. Foi a palavra que usou: inundado. Entrara na cozinha e a Desilaine, a nova cozinheira, estava fazendo um lagarto na panela com muito alho, como sua mãe fazia, e o aroma era o da sua infância. Pegou um aipim frito que esfriava em cima da geladeira e começou a mastigá-lo, e olfato e paladar, para decidir qual dos dois era mais feliz naquele instante mágico, só numa melhor de três. Ao mesmo tempo a cozinha enfumaçada, com um faixo de luz natural fazendo brilhar as maçãs artificiais da mesa, enchia os olhos de Gelson como uma composição da escola flamenga do século XVII. E como se não bastasse isto, no rádio tocava uma música do Caetano. O único sentido que não acompanhava o êxtase dos outros quatro era o tato, e Gelson olhou em volta, atrás de algo para ocupá-lo. Uma das nádegas da Desilaine cabia, miraculosamente, na palma da sua mão, e a sensação da carne rija através do brim, explicou Gelson, completava maravilhosamente aquela tomada sincronizada das portas da percepção humana. Quando dona Zuleica entrara na cozinha, não flagrara uma prosaica mão na bunda da empregada. Interrompera um tableau de plenitude, um momento de sinergia entre memória e experiência que raramente se abre ao Homem, explicou Gelson. Mas dona Zuleica não quis nem saber, despachou a Desilaine e até hoje não fala com o marido, que não pára de lamentar a falta de sensibilidade poética no mundo moderno.

Luís Fernando Veríssimo

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