quinta-feira, 25 de outubro de 2007

A COMÉDIA DA VIDA

por Sérgio de Agostino

- Que bela comédia! - disse madame Juliana, apoiando-se no braço do marido. Sorridente, ele assentia com ligeiro inclinar da cabeça àquela observação da esposa, enquanto desciam as escadas de acesso à rua.
O burburinho dos espectadores parecia aprovar a satisfação do casal. Muito loquazes, todos traziam um sorriso de incontida alegria, próprio de quem desfrutara ao máximo o espetáculo.
Na rua, uma garoa típica das frias noites de junho dispersou, rapidamente, o público que, há pouco, lotara a sala. Alguns minutos após a saída, o teatro mergulhara em profundo silêncio, como se nada houvera acontecido, como se o público lá não estivera, enchendo-o com o alarido dos comentários e aplausos. Agora, só o eco de tardos passos do zelador se faziam ouvir subindo a escadaria que ligava o saguão de entrada à platéia escassamente iluminada por diminutos focos de luz colocados, espaçadamente, nas paredes laterais. Ao fechar a sala e correr a cortina, ouviu, assustado, vozes no palco. Colhido de surpresa, as pernas bambearam-lhe e, não podendo suster o corpo, espichou-se redondamente numa poltrona. Não podia crer no que via: a cortina do palco aberta, as luzes da ribalta acesas, e vozes, muitas vozes falando ao mesmo tempo, como se os atores ainda lá estivessem representando os seus papéis. Aturdido, procurava ver os donos das vozes, mas nada divisava, a não ser alguns objetos se movimentarem em cena tocados por invisíveis mãos. Um suor gelado umedeceu-lhe as têmporas. O coração parecia querer saltar-lhe do peito. Uma sensação de impotência travou-lhe os movimentos, deixando-o hirto, como se o houvessem colocado numa camisa de força. Pouco a pouco, foi vencendo o estupor e, atento à fala das personagens, ouviu:
"- Ah! O público...Reage como se as estocadas não fossem dirigidas a ele. Vocês viram como madame Juliana sorriu de forma velada quando dissemos que o adultério é o que liga três pessoas sem uma saber. Pobre marido, que se desfez em riso, sem perceber que era o alvo de tão certeira seta."
"- Sim, é verdade - atalhou uma voz masculina. - O palco é o grande espelho, o confessionário público onde, às escondidas, um alto-falante espalha, sem pudor, aquilo que se pretende esconder."
E ouve-se ainda:
"- E o jovem de mãos dadas àquela senhora de idade bem avançada, coberta de finas jóias? Vocês perceberam com que dissimulação ele a acariciava?"
"- Não tão dissimulado - disse outra voz - que não pudesse ocultar de todo a aversão sentida por aquele pergaminho humano."
"- O interesse - fala tudo que é língua, meus caros, e representa tudo que é personagem, mesmo a do desinteressado - disse uma voz pausada e monótona que, ao julgar pela inflexão, devia ser de pessoa mais experiente, mais vivida."
"- É verdade - acrescentou outra voz não menos versada na arte de viver - quando eu era jovem acreditava que só o dinheiro podia comprar tudo. Agora que sou velho: tenho certeza."
Uma gargalhada vinda da platéia denunciou a presença de quem não fora convidado para ouvir os comentários feitos à margem do texto. Assustadas, as personagens abandonaram a cena. A cortina rapidamente se fechou. As luzes apagaram-se. Era o fim de mais um ato da ridícula comédia humana.
Já refeito do susto, o zelador, que a tudo estivera atento, viu, sobre uma poltrona, a um canto, um cartão orlado de delicados arabescos, onde uma letra nervosa escrevera: "Obrigada pela inesquecível noite. Quando repetiremos a aventura? Nada tema: meu marido sairá em viagem de negócio dentro de uma semana."
Sobre a cortina do palco, bordada em alto relevo, enlaçada à máscara da tragédia, a comédia trazia, na boca escancarada, a gargalhada provocada pela comédia da vida.

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