sexta-feira, 16 de novembro de 2007

A impossibilidade da dor

Por Heidi Strecker

Ritmo preciso e corte apurado marcam “Réquiem”, o primeiro romance da escritora e dramaturga Vera de Sá


Com um manejo espantosamente desenvolto da matéria ficcional, a narradora de “Réquiem” avança no discurso indireto livre e coloca uma zona de sombra bem à vista do leitor. O resultado é um romance tenso, de ritmo preciso e corte apurado.

Um personagem sem nome persegue a amante morta, mas é perseguido por ela e por tudo o que ela evoca: torpeza, degradação, vilania, desespero e um incrível vazio.

Curto (pouco mais de cem páginas), o romance não gira em torno da morte, mas em torno das fantasias doentes de um homem face à morte de sua amante. O leitor acompanha suas tentativas exasperadas de produzir alguma forma de dor, nenhuma adequada, nenhuma real, nenhuma vital. Acompanha de perto, também, seus raciocínios vorazes e estéreis, girando em falso.

Em termos de linguagem, “Réquiem” apresenta os fatos de forma segura, direta, sóbria e formal. O romance se desenvolve em dois tempos. Na primeira parte de “Réquiem”, o narrador vai da morte de Maria ao encontro com seu marido.

“Dor? Nenhuma. Esperava que chegasse. Desde que Maria morreu, isto é, desde o momento em que deveria ter começado a sentir dor, ele esperava que a dor chegasse. Extraía algum sofrimento com a esperava, mas a ansiedade não tomava o lugar da falta de dor. Às vezes, achava que pressentia a vinda, embora o máximo que conseguisse distinguir fosse uma certa sensação de sujeira.”

A partir daí, o narrador vai tentar reconstituir todos os passos de uma vida ao mesmo tempo com e sem Maria: a autópsia do corpo, a cremação, a busca nas fotografias, os sinais de sua ausência na casa, a lembrança do primeiro encontro (numa platéia talvez de um concerto), as muitas vezes em que Maria o deixou, um anel que ela levava no dedo, a lembrança de uma festa. E então uma perambulação aviltada pela cidade leva o narrador à casa do marido de Maria.

Nesse ponto o leitor é impelido a presenciar cenas estranhas, como num filme do diretor alemão F. W. Murnau. Uma atmosfera de irrealidade invade a narrativa.

A segunda parte do romance tem um andamento mais distendido que a primeira e recobre as variações em torno de um certo manuscrito, um misterioso poeta já morto e um anel com um engaste, que simboliza o mensageiro da morte. “Seu manuscrito estava aberto na mesma página há tanto tempo que a área exposta já apresentava sinais de enrugamento devido à umidade. Não era manuseado desde a morte de Maria. O texto permanecia interrompido e as linhas já escritas começavam a perder o sentido, um tipo de esmaecer, como se o vazio original fosse se reconstituir. Ao lado de seu manuscrito, fechados, estavam os cadernos de Derive, onde, em algum lugar, sabia estar grafado ‘Nehebkau’.” Em que pesem essas extravagâncias (o anel, o personagem Derive, o manuscrito, o inferninho onde ele e Maria se conheceram), o pulso é seguro.

Apesar desses elementos dissuasivos e de um registro rítmico diferenciado, na segunda parte de “Réquiem” não há perda de qualidade. A trama continua coesa e amarrada. O todo constitui uma malha tensa, um corpo sisudo e escuro. "Réquiem" é um romance muito bom.

O livro:

“Réquiem”, de Vera de Sá. Ed. Record, 125 págs. R$ 32.

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Heidi Strecker

É crítica literária, autora de "Análise de Texto" (ed. Atual) e "Cinema: Emoções em Movimento" (ed. Melhoramentos).

Fonte: http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2914,1.shl

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